Largo Pedro da Fonseca

“PEDRO DA FONSECA: O CORAÇÃO ALÉM DA RAZÃO” 

Sacerdote jesuíta e doutor em Teologia, Pedro da Fonseca nasceu em Proença-a-Nova, foi afamado professor de Filosofia e de Teologia, tão reconhecido que mereceu dos contemporâneos o epíteto de “Aristóteles Lusitano”, e ofereceu à Santa Casa da Misericórdia de Proença-a-Nova uma relíquia sagrada que lhe havia sido oferecida pelo papa Gregório XIII, sendo constituída por um pedaço de madeira da cruz onde Cristo teria sido crucificado. Todos temos a ideia que foi um personagem importante e por isso lhe foi dedicada uma estátua colocada na Praça mais nobre da vila de Proença e que tem precisamente o seu nome: Praça Pedro da Fonseca.

 Além da razão

 É fácil falar de Pedro da Fonseca, tanta é a informação publicada ao longo do tempo. Estou a recordar, entre as muitas publicações, a monografia dos Padre CATARINO e os dois fabulosos volumes de “Antiguidades, Famílias e Varões Ilustres de Sernache do Bonjardim e seus Contornos” de Cândido TEIXEIRA e tenho presentes duas extraordinárias revistas que, em datas especiais, publicaram textos muito importantes sobre o nosso conterrâneo. Estou a referir-me à Brotéria que, em 1928, assinalando os 400 anos do nascimento de Fonseca, publicou um importante registo de Oliveira DIAS e à Revista Portuguesa de Filosofia que, em 1953, assinalando os 400 anos do ano lectivo em que Fonseca, ainda estudante de Teologia, regeu pela primeira vez, em Coimbra, um curso de Artes lhe dedicou o Fasc. 4, do Tomo IX, de 1953, com textos vários que abordam a vida e obra de Fonseca, o seu contributo para a renovação da escolástica, a liberdade divina, a essência do saber filosófico, a ciência média… Também não esqueço três referências fundamentais: 1) Imagem da Virtude no Noviciado da Companhia de Jesus em Coimbra, de António FRANCO; 2) História da Assistência da Companhia de Jesus em Portugal, de Francisco RODRIGUES; 3) Necrológio do P.e Pedro da Fonseca, pelo P. Fernão CARVALHO, 1599. Inúmeras são também as entradas nas diversas enciclopédias e dicionários de filosofia. (Estou a preparar uma listagem bibliográfica sobre Fonseca, a sair provavelmente em Maio).

 É fácil falar de Pedro da Fonseca, mas é muito difícil abordar a sua obra filosófica e teológica expressa nos quatro títulos que publicou. Portanto, deixo esse encargo para os verdadeiros especialistas no número dos quais não me incluo. 

Fonseca nasceu em Proença a Nova em 1528, em local incerto, fruto do segundo casamento do fidalgo Pedro da Fonseca com Helena Dias. Filho de uma família ilustre, era um jovem fogoso e colérico (António FRANCO) e aos 20 anos ingressa na Companhia de Jesus, em Coimbra. Faz os estudos normais de um jesuíta, embora com maior brilhantismo e rapidez, e alcança a fama relativamente cedo. Aos 36 anos deixa de dar aulas, para se dedicar a outras tarefas dentro da Companhia de Jesus. 

O Homem e o cidadão Pedro da Fonseca foi uma personalidade multifacetada e desenvolveu as suas atividades em diversos campos, qual génio renascentista. Foi professor e padre jesuíta. Nas Universidades de Coimbra e Évora ensinou Filosofia e Teologia. Foi Grande entre os grandes dos jesuítas. Foi amigo de papas e cardeais. Privou com Filipe II de Espanha do qual foi conselheiro. Mas, acima de tudo, foi sincero amigo dos pobres e desprotegidos da sorte e da sociedade. Foi, como agora se diz, solidário. ~

Foi intelectual e escritor. Escreveu apenas quatro títulos: 1) Institutionum Dialecticarum libri octo – editado pela primeira vez em Lisboa, no ano de 1564; 2) Commentariorum in libros Metaphysicorum Aristotelis Stagyritae volumina quator - sendo o primeiro volume deitado em 1577 e os outros em anos sucessivos; 3) Isagoge Philosophica – editada em Lisboa em 1591; 4) Commentarii in Logicam – um suplemento publicado em 1604. Não foi extensa a sua obra, mas foi tão relevante que nos 50 anos posteriores à sua morte, foi editada 53 vezes na Europa. Só na Biblioteca de S. Petersburgo existem 15 edições diferentes. Aos trinta anos de idade já era conhecido em toda a Europa, especialmente em Roma, por “Aristóteles Português”. 

Como disse, não me quero alongar sobre o pensamento de Fonseca. Apenas refiro que a sua relevância vem do facto de, nos comentários a Aristóteles, ter optado por ir às fontes gregas que traduziu para latim, cuja tradução foi considerada a mais fiel por quase todos os especialistas. Famoso ficou também pela conceção da doutrina da Ciência Média, disputando com Luís Molina a paternidade da sua criação. Sem muitas delongas sobre a Ciência Média direi apenas que ela tem a ver com a relação entre a omnisciência divina e a liberdade humana, com a questão dos futuríveis. (No fundo o que a Ciência Média afirma é que, além de saber tudo o que acontece ou irá acontecer, Deus também sabe o que iria acontecer caso a pessoa agisse de modo diferente.) 

Hoje há centenas de referências bibliográficas a Fonseca, quase todas com comentários elogiosos, e o nosso conterrâneo tem sido objeto de estudo em teses de mestrado e doutoramento em várias partes do mundo. 

E convém não esquecer que Fonseca foi professor em Évora e, além de professor, foi ainda Reitor do Colégio das Artes, em Coimbra. 

Pedro da Fonseca foi um intelectual, um pensador, e foi um homem de religião com enorme dimensão social e política. Para melhor se fazer ideia destas últimas dimensões pouco abordadas pelos estudiosos atente-se neste singelo percurso pelos cargos que ocupou e pelas tarefas que desempenhou: 

1528 – Nasceu em Proença a Nova; 

1547 – Ter-se-á matriculado no Colégio das Artes em Coimbra: 

1548 – Entrou no Colégio de Jesus, em Coimbra; 

1552- Iniciou o curso de Teologia, em Coimbra, dando simultaneamente aulas de Filosofia no Colégio dos jesuítas; 

1555 – 1561 – Ensina Filosofia no Colégio das Artes;

1564- Publica as Instituições Dialécticas.

1564-1566 – Ensina Teologia Especulativa, na Universidade de Évora;

1567 – Regressa a Coimbra como Reitor do Colégio das Artes até 1569;

1570- Recebe o grau de Doutor em Teologia, na Universidade de Évora, estando presentes os Cardeal D. Henrique e D. Sebastião, presenças que indiciam o seu peso político. Entretanto continua, em Lisboa, a preparar o seu trabalho sobre Metafísica;

1572 – É escolhido pelos jesuítas portugueses para os representar em Roma na III Congregação Geral para eleição do novo superior. Aí é escolhido o padre Everardo Mercuriano que o nomeará seu assistente-geral, funções que desempenhou durante 7 anos. Foi também nesta estadia em Roma que foi conselheiro do Papa Gregório XIII. Aproveitou os 10 anos que permaneceu em Roma para desenvolver as suas reflexões sobre Metafísica, consultando os códices do Corpus Aristotelicum e muita outra bibliografia que não teria disponível em Portugal.

1577 – Publica, em Roma, o primeiro tomo dos Comentários à Metafísica de Aristóteles

1581- Conselheiro de Filipe I; 

1582 – Regressa a Portugal e é nomeado prepósito (superior) da Casa de São Roque, em Lisboa; 

1588 – Faz a doação da relíquia do Santo Lenho à Misericórdia de Proença a Nova.

1589 – Nomeado Visitador da província Portuguesa da Companhia de Jesus, cargo que ocupou até 1592. Publica o 2.º volume das Comentários à Metafísica de Aristóteles. (Os outros dois volumes serão publicados postumamente);

1593 – Regressa a Roma, como delegado de Portugal à V Conferência Geral da Companhia, regressando depois a Portugal.

1593 – 1599 – Dedica-se a ultimar as suas obras filosóficas para publicação. No último período da sua vida desenvolve, para além do âmbito religioso e intelectual, intensa actividade no domínio da política social e de assistência:

- Funda o Seminário Irlandês de S. Patrício para preparar sacerdotes que instruíssem os seus patrícios residentes ou de passagem em Lisboa, e que voltassem para a Irlanda a fim de ali pregarem a fé.

---- - Cria Casa dos Catecúmenos, com oficinas, onde se recolhiam, sustentavam, catequizavam e baptizavam os que das seitas dos turcos, mouros e judeus se queriam converter à fé católica.

---- - Funda a Casa das Convertidas.

---- - Dá origem à Casa de Recolhimento das Donzelas órfãs de Nossa Senhora da Conceição;

---- - Funda a Casa dos Noviços de Lisboa

---- - Institui a Casa de Recolhimento das Meninas Órfãs de Nossa Senhora do Amparo;

---- - Funda a Casa do Recolhimento das Moças Órfãs dos Soldados Espanhóis;

---- - Cria o Convento das Religiosas de Santa Marta.

Traços de carácter

Afinal como era Pedro da Fonseca? Na ausência de um retrato físico, que espero ainda encontrar, é, todavia, possível traçar-lhe um perfil psicológico e de carácter.
Passo a referir algumas citações que ajudarão os presentes a formular um juízo supostamente correcto.
“ … Homem cheio de letras, virtudes e obras excelentes…”

“Concorreram neste Padre grandíssimos talentos, letras, virtude, prudência, destreza nos negócios, em tudo era homem cabal e, como dizemos, de mão cheia”

“Era de grande conselho e mui judicioso…”

“Foi nele muito conhecida a grandeza de ânimo, que nada abafava: a todas as dificuldades por medonhas que fossem, punha o peito e com maravilhosa indústria lhe buscava saída. Na execução das cousas estranhava o perder tempo em culpar, o que por ventura fora mal principiado, dizendo, que só servia buscar remédio ao que estava a fazer”

“Nas dificuldades manifestava um ânimo quieto e um alegre rosto.”

“Para suas ocupações ordinárias da oração, Missa, lição espiritual, estudo, e as mais, que eram muitas, tinha o tempo repartido dando a cada uma o seu sem falta; de sorte que parecia, sua vida um relógio concertado.”

“Parece que teve todas as virtudes em grau subido, rara prudência a aconselhar com grande humildade, por isso sujeitava seu parecer ao de outros, ainda que inferiores. Dom singular de tratar com o próximo… Graça particular de aquietar e consolar pessoas afligidas e perturbadas. Muita afabilidade na conversação junta com modéstia religiosa.”

“ Era contínuo em visitar e consolar enfermos sem nunca ser pesado a pessoa alguma… Foi muito cortês para todos ainda que fossem súbditos. Nem lhe ouviram palavra de desprezo, nem desentoada. Tinha grande conceito de todos e confiança e a todos estimava muito. Era de grande segredo em especial nas faltas dos súbditos, quando as via. Nunca comunicou a outro Superior o que ele mesmo podia remediar… Das faltas que remediava, assim se esquecia, como se nunca se cometessem, agasalhando os culpados com particular amor e afabilidade sem fazer diferença de pessoas, antes aos mais pequenos a eles agasalhava e consolava mais.”

“ Sua caridade foi extraordinária, com a qual abraçava todos … e a ele recorriam como pai em seus negócios, não só os desta Província, mas de outras mui remotas como Brasil, Índia e Japão. A todos respondia, consolava e ajudava no que podia.”

“Em todas as suas obras, até as por em perfeição, corria com elas, em estando assentadas, as encarregava a pessoas ilustres, pias e a oficiais del-rei com seus estatutos e regimentos, para se perpetuarem.”

“… de natural não era fleumático, mas fogoso.”

“A todos respondia com muita paz e alegria … e ninguém fugia dele, antes todos o buscavam. Nunca alguém o ouviu queixar, que andava cansado, ou que tinha que fazer, ou que faltava a suas obras; nem dizia, eu fiz tal e tal cousa, nem fazia caso algum do que tinha obrado, sendo que era muito. A todos se mostrava agradecido; e aos que se mostravam ingratos pelos benefícios feitos, tendo ocasião, lhos fazia avantajados.”

“” Era mui devoto e pio em todas as cousas do culto divino. Via-se nele muita brandura e suavidade de lágrimas nas cousas de devoção, as quais tratava sempre com grande humildade reverencial. … A sua mansidão foi adquirida com o exercício da mortificação e mais virtudes porque era colérico e em mancebo o mostrava em algumas ocasiões.”

“… se lhe diziam alguma coisa, das que costumam causar nos outros amargura, ele a recebia com semblante alegre e risonho… Tal era a sua bondade e suavidade.”

Francisco RODRIGUES, na obra já referida, refere alguns defeitos que lhe eram apontados. Parece que gostava de viajar bem acomodado nas deslocações que fazia ao estrangeiro e que nas deslocações em Lisboa, entre as diversas instituições sob administração jesuíta, procurava sempre deslocar-se em carruagens comodamente instalado, o que não era muito condizente com a apregoada austeridade dos jesuítas.
Também se poderá questionar a sua relação privilegiada e amistosa com Filipe I (segundo de Espanha) e imaginar uma traição ao patriotismo. Afinal ele era um conselheiro do monarca e até lhe deu as boas vindas. Não vou por esse caminho. A História tem de ser interpretada diacronicamente e o papel dos jesuítas neste período não está ainda clarificado no meu espírito. Afinal não foram eles acérrimos defensores da restauração em 1640? E não teria estado o Marquês de Pombal interessado em denegrir a sua intervenção aquando da crise dinástica de 1580? A verdade é que Filipe I, assim que chegou a Lisboa, foi visitar Fonseca na Casa de S. Roque.

A morte

Estando em Lisboa, adoeceu aos 22 dias de Outubro de 1599 e, dizem os coevos, “ nas grandes dores que padecia, nunca lhe viram sentimento nem sinal de impaciência”. Encarou o fim com uma dignidade enorme como atestam as citações:

“Na obediência ao irmão enfermeiro era pontual, tomando todas as mezinhas, e mais cousas, que os médicos lhe ordenavam, por ásperas que fossem. Sem ordem sua, nem uma pouca de água aceitava, sendo assim que padecia grandes sedes, por serem as febres mui ardentes.”

“Tratava com grande os irmãos que o serviam, agradecendo muito o que lhe faziam e os avisos que lhe davam para bem da sua alma Nas dores grandes que padecia nunca lhe viram sentimentos, em final de impaciência. “

“Esta nova – proximidade da morte – recebeu o Padre com muita paz, mostrando aquela grandeza de ânimo, que sempre teve em sua vida e segurança de consciência.”

“Chegando a hora do seu trânsito, estando em seu perfeito juízo e falando sempre até ao fim, mostrava com palavras muito devotas, estar desejoso da partida.”

Expirou “suavemente” na Casa de S. Roque, numa quinta-feira, aos 4 dias do mês de Novembro de 1599, às 5 horas da manhã. “Expirado, ficou seu rosto bem assombrado, como que dormindo no Senhor”.
Está sepultado na campa n.º 15 da Igreja de São Roque.

                                                           António Manuel Martins da Silva